Eduardo Du Alemão

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Um Artista Engajado

José Eduardo Borges, conhecido artisticamente como Du Alemão, é grafiteiro, educador social e uma das principais vozes da arte urbana engajada em Teresina. Integrante e coordenador do coletivo VDC (Vai Dar Certo), fundado em 2015, Alemão tem consolidado uma trajetória em que o graffiti ultrapassa o gesto estético para se tornar uma verdadeira ferramenta de transformação social nas periferias da capital piauiense.
Eduardo nasceu em Porto Alegre, mas foi em Teresina que sua identidade artística se consolidou, registrando, nas experiência das ruas, nas marcas inscritas nos muros, os códigos de pertencimento:

“Que eu me lembre, eu tinha 12 anos de idade, lá no Rio Grande do Sul. Morava num bairro e estudava em outro. Comecei a ver a questão de gangues. Lá nesse bairro tinham uns nomes, umas coisas riscadas nas paredes. E na minha rua tinha uns cara maiores, que os irmão deles brincavam comigo e falavam que o irmão dele era da ZN, o outro era da TC, que era a “Turma dos Calhordas”. E aí, com 12 anos, comecei a pegar as tintas com os coleguinhas, com bisnaga, vivia riscando. Cada um botou um nome. Eu riscava “Rasta”. É que, quando eu vim para o Piauí, eu conheci esse movimento, o Reggae, e lá não conhecia, ninguém sabia o que era “rasta”. 

Quando retornou ao Piauí, em meados da década de 1990, o graffiti já havia se tornado parte de sua biografia.

“Aí, quando vim para o Piauí, com 14 anos, estudava no colégio da Polícia Militar. Aqui, no Pedra Mole, no muro dessa praça, a Francisco Sales, fiz a minha primeira pichação. Eu assinei SG, que é “Somos o Graffiti”. Eu comecei pichando na escola, Aranha SG. Eu fazia um “charpi”. Teresina, Rio de Janeiro e Fortaleza são as últimas três cidades que utilizam essa técnica de pichação, que é uma letra embolada assim, quase ninguém consegue identificar ou ler. Aí eu comecei. De 1996 até 2000, durante esses quatro anos, até fazer 20 anos, eu fiz a SG, criei, coloquei várias pessoas, depois saí. Até hoje existe desse jeito”.

O seu aprendizado, como o de muitos artistas urbanos, foi marcado pelo improviso e pela circulação de imagens. “Eu não tive um mestre, por assim dizer. O que eu tive foram as revistas, nas bancas daquela época, dos anos 80, a revista Graffiti, com bastante fotos e tal. Até a gente começou a fazer aqui”, explicou. Trata-se de um processo que combina intuição, observação e prática, um caminho semelhante ao de tantos grafiteiros que se formaram a partir da troca e da experimentação.

Mais tarde, a vivência se ampliaria com sua formação em artes plásticas no CEFET, experiência que deu densidade acadêmica ao olhar que já nascia intuitivo. Esse duplo percurso – autodidata e institucional – ecoa a ideia de que, como escreve Pierre Bourdieu, as práticas culturais não podem ser entendidas como simples oposições binárias entre o que é socialmente legítimo e o que é popularmente inventado. Em vez disso, elas emergem da interação complexa entre esses dois polos, onde a legitimidade social, muitas vezes ligada aos grupos dominantes, interage com a criatividade e a apropriação popular, resultando em novas formas culturais. Na obra de Du Alemão, as práticas culturais se constroem nas interseções entre  a legitimidade e a invenção popular, profundamente marcada pelo senso de transformação social. “O graffiti é isso. É rua. É spray. É parede. É suor. É respeito. Eu lembro de uma vez que fui convidado pra grafitar num evento de escola, e o diretor queria que a gente apagasse umas pichações antigas que estavam lá. Eu falei: ‘Não, não apago’. Aí ele disse: ‘Mas é arte?’. Eu falei: ‘É. É arte urbana, é expressão. Se quiser, pinta de branco antes, aí a gente vem’. Tem que respeitar. Não pode apagar a história dos outros. O graffiti é resistência. Quando ele vira só decoração, ele perde o sentido. O graffiti tem que provocar. Tem que fazer pensar. Não é só pra ficar bonito na parede”, explica.

Trajetória

A arte de Du Alemão pulsa nos muros da cidade com mensagens de resistência, cidadania e pertencimento. Com traços intensos e temas que valorizam a cultura popular, a identidade negra e o cotidiano das quebradas, Du Alemão vem usando o graffiti para criar pontes entre juventudes periféricas e novas possibilidades de vida. Como educador, lidera oficinas e eventos solidários que aproximam adolescentes e jovens do universo da arte urbana, cultivando autoestima e protagonismo. Nas oficinas que ministra, Du Alemão aproveita a oportunidade para transmitir, não apenas técnicas, mas sua própria experiência de vida: “Já ensinei gente que virou artista, já ensinei gente que virou professor. Já levei o graffiti pra dentro da igreja. Já pintei mural com versículo. Já pintei no CRAS, já pintei em escola, já pintei em hospital. Já fui em comunidade onde não tinha nem muro e a gente improvisou com placa de madeira. O importante é levar a mensagem. É dar voz”, explicou.

A força de sua narrativa pessoal revela um artista comprometido com a transmissão da experiência e com a crença de que o graffiti, mais do que estética, é identidade, pertencimento e resistência.

“O importante é levar a mensagem. É dar voz. Porque tem muito jovem que não tem espaço. A escola não ouve, a família não entende. A arte é onde ele se encontra. E o graffiti é isso: identidade, pertencimento, resistência. E a gente continua. Tô aqui agora com a camiseta da VDC. Todo dia eu boto. A gente tenta manter essa identidade, essa irmandade. Não é só fazer graffiti. É a vivência mesmo, entendeu? Quando você vê um cara da sua crew pintando num evento, você vai lá, fortalece, troca tinta, compartilha técnica. Às vezes, nem vai grafitar, mas só de estar presente já fortalece. É isso que eu acho que falta hoje. A galera nova tem talento, mas falta mais união, mais presença. Tá muito cada um por si. Antigamente, a gente se encontrava num lugar só pra trocar ideia. Hoje todo mundo fica no Instagram. Então, resumindo, meu caminho no graffiti é esse. Comecei com pichação, fui pra arte, estudei, caí, levantei, voltei. Hoje, vivo disso. Com muito orgulho. E ainda tenho muito pra aprender. Mas o mais importante é saber de onde veio e pra onde quer ir. E eu quero seguir pintando, ensinando, construindo. Porque enquanto tiver muro, vai ter graffiti. Enquanto tiver injustiça, vai ter arte de resistência. E enquanto tiver juventude, vai ter alguém querendo deixar sua marca no mundo. É isso que me move. É isso que é o graffiti pra mim”

Du Alemão revela que vem trabalhando cada vez mais de sua arte. “Eu mesmo só fiz dois graffitis de rua este ano, os demais foram comerciais, para a prefeitura, para o estado. Na rua, o meu trabalho está em várias praças, onde estão os meus personas, que é o peixe, o macaquinho e tal. Entre os trabalhos comerciais destaco mais de dez escolas onde tenho pintado graffitis, desde temáticas esportivas, escolares…”.

Ao lado dos seis artistas que compõem o VDC Crew, Du Alemão levou cor e força simbólica a espaços públicos emblemáticos de Teresina,  transformando muros em galerias de expressão coletiva. Um desses espaços foi o Viaduto da Tabuleta, estrutura que liga as Avenidas Henry Wall de Carvalho e Barão de Gurgueia, inaugurado em agosto de 2022, no aniversário dos 170 anos da cidade. No Viaduto estão dezenas de xilograffiti, unindo a estética da xilogravura às técnicas do graffiti. “Também pintamos a subestação do bairro Jockey para a Equatorial”, disse.

Estilo adotado pelo artista

O graffiti, para Du Alemão, nasce de um espírito de rebeldia e insubordinação, características que, segundo ele, acompanham todo grafiteiro em seus primeiros passos. O percurso geralmente se inicia pelas letras — o chamado bomber, estilo com formas arredondadas e volumosas. “Quem começa a grafitar, normalmente começa fazendo letra. Depois passa a fazer rosto, painel, 3D, mas começa pelas letras”, explicou. Essa tradição conecta Teresina a uma linhagem mais ampla de artistas que exploraram o poder gráfico do nome inscrito no espaço urbano.

Como ele mesmo explica, sua entrada na arte se deu pela pichação, com letras embaralhadas no “charpi” teresinense, mas ao longo dos anos o traço foi incorporando personagens, cores e narrativas sociais. “O espírito do grafiteiro tem muito disso, de rebeldia, de insubordinação”, explica. Mas, com o tempo, no entanto, Du Alemão veio construindo uma identidade distinta. “Hoje, raramente eu boto uma bomber, eu não faço muito bomber. Eu já faço meus personagens: o macaquinho, o peixe e tal. Eu uso eles para falar de meio ambiente, da questão do clima. O passarinho mais recente que criei, o Jandaia Sol, dediquei a Teresina”, afirmou.

O Jandaia Sol, inspirado na ave símbolo da cidade, tornou-se uma espécie de assinatura poética, já presente em praças, murais e até quadros encomendados pela Secretaria de Meio Ambiente. Esse personagem é um exemplo desse diálogo entre identidade local e crítica ambiental. Assim como os bonecos mascarados, que fazem alusão à violência policial, ou os murais em escolas e espaços comunitários, seu trabalho carrega o compromisso de transformar paredes em lugares de memória e reflexão.

Múltiplas influências moldaram sua trajetória: desde a insurgência da pichação e suas letras bomber ao surrealismo de Salvador Dalí, a arte abstrata e as técnicas de realismo que se fundem em seu repertório, gerando uma obra híbrida, atravessada pelo diálogo entre o erudito e o popular. “Tem também a minha parte política. O meu trabalho, de fato, é mais político”, afirmou.

A dimensão espiritual também marca sua obra. Depois de sua conversão religiosa, passou a inserir cruzes, versos bíblicos e representações de Cristo em seus painéis. Mas não se trata apenas de espiritualidade: “Tem uma parte do meu graffiti que tem motivo religioso, porque me converti. Faço muito graffiti com a cruz, com o nome Cristo. Faço também com o personagem Jesus, mas isso não é do VDC, é mais uma coisa minha”, explica.

Definir um estilo único em Du Alemão é tarefa difícil, e ele mesmo reconhece a complexidade desse percurso. Seu estilo, híbrido e mutante, incorpora tanto demandas comerciais — como murais realistas de Hulk ou paredes com efeitos tridimensionais — quanto referências eruditas. “Quando me formei, gostava muito de arte abstrata. E também de surrealismo. Salvador Dalí me influenciou muito. Gosto de misturar realismo com animal, com coisa simbólica. Isso influencia meu graffiti”, contou.

Essa multiplicidade — entre crítica social, religiosidade, surrealismo e experimentação abstrata — revela um artista que faz do graffiti um campo de disputas simbólicas, onde a estética é sempre atravessada por ideais de transformação.

Nesse ponto, Du Alemão insere-se numa tradição que ultrapassa a estética: o graffiti como linguagem insurgente, “uma arte que provoca e não se contenta em ser apenas decoração”. Como lembrava Walter Benjamin, cada imagem carrega em si um índice histórico do tempo em que foi criada. Os murais de Du Alemão, nesse sentido, são palimpsestos da cidade – sobreposições de rebeldia, crítica e celebração.

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