Soli

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O início

No início dos anos 2010, a capital piauiense passava por intensas transformações. Sua população tinha ultrapassado os 800 mil habitantes (IBGE, 2010), apresentando forte expansão periférica, especialmente na zona norte, onde se inscreve a cartografia da memória de Iago Costa, o Soli. Criado no Santa Maria da Codipi, bairro que carrega o peso histórico da urbanização acelerada e da periferização, Soli aprendeu a conviver com os desafios de urbanização. Foi em um dia qualquer e banal, em 2013, ainda adolescente, que Iago conheceu o grafiteiro Laércio Sinza:

Eu tava jogando bola em um bairro pouco distante do meu e encontrei ele, né, fazendo um trabalho comercial, com graffiti, com lata de spray e tudo. E eu me interessei. Aí ele foi me explicar como é que funcionava e me perguntou se eu desenhava. E eu já desenhava. Desde o ensino fundamental, eu sempre fui um bom um bom desenhista, né? Eu tive aulas de artes plásticas, a gente pintava quadros e tudo. Então, sempre fui um um bom desenhista. Aí eu fui mostrar os desenhos que eu fazia para ele em papel, alguns quadros que eu tinha e ele se interessou também, né? 

Soli logo se inseriu no coletivo Ruaz Crew, criado por Sinza. A arte tinha lá seus custos e como ainda não trabalhava, tinha dificuldade de comprar os materiais. “A gente combinou um dia sair para pintar, com o material dele, porque eu não tinha material nem nada. Até minhas condições financeiras na época também eram um pouco difíceis, porque eu ainda não trabalhava com CLT. Sinza me ensinou tudo, como é que se trabalhava com látex, em tela, usando uma lata de spray”, lembra.

Esse aprendizado informal, mediado pela oralidade e pela prática compartilhada, ecoa o que Celso Gitahy (2017, p. 42) descreve como a pedagogia do graffiti: uma “transmissão de códigos, estilos e técnicas que circula entre gerações, de modo não institucionalizado, mas profundamente rigoroso”. A relação mestre-aprendiz, tão presente nas artes tradicionais, também estrutura o graffiti, onde o traço é simultaneamente aprendizado estético e afirmação identitária.

O seu percurso no graffiti é marcado pelo aprendizado direto com Laércio Sinza, a sua maior referência de lettering no Piauí. Seu legado aparece na ênfase que Soli dá às letras:

“O Sinza foi e é a minha principal referência, até porque ele foi o meu professor, né? Ele que me ensinou, ele que foi o cara que eu me identifiquei. E hoje em dia eu faço letras; a minha especialidade é letras por conta dele, porque ele era um letrista. A especialidade dele era fazer o WildStyle. Ele fazia bastante letra, e não era um cara de fazer muito personagem. O Sinza não se encontra mais aqui, vivo, porém quero levar o legado dele, de fazer estilos de letras. Ele era um cara muito foda em letras e eu quero carregar esse legado dele”.

Sinza, falecido precocemente, deixou um legado de letras e estilos que ainda hoje reverbera na cena local. Sua figura conecta-se à tradição dos letristas brasileiros, em que a experimentação tipográfica se torna linguagem central do graffiti (GITAHY, 1999). Para Soli, carregar esse legado é mais do que técnica: é preservar a memória de um mestre que fez da rua sua escola e que inscreveu seu nome na história do graffiti em Teresina.

A sua escolha é mais para os peace, um estilo de letra que se situa entre o bomb e o wildstyle, sendo mais encorpada, colorida e legível, permitindo variações criativas. Como ele mesmo explica: “Meu estilo atual, atualmente, eu faço muito peace, que é uma letra mais encorpada, mais coloridinha, mais de boa para trabalhar”, explica. A escolha o conecta a uma tradição que, segundo Gitahy (2012, p. 134), combina “natureza gráfica e pictórica, traços figurativos e repetição de estilos que dialogam com o inconsciente coletivo”.

Em Soli, a influência se dá menos pela cópia direta de estilos estrangeiros e mais pela tradução local. Soli vem trabalhando variações tipográficas, testando densidade, cores e sobreposições, com suas letras robustas e coloridas. O suporte, quase sempre, tem sido os muros periféricos de Teresina, que carregam ressonâncias do Bronx dos anos 1970, embora reinterpretadas no calor do BR-Ó-BRÓ piauiense.

Conflitos e riscos

A entrada no universo do graffiti também expôs Soli às ambiguidades da legalidade. Como ele observa, muitos muros, cobiçados pelos grafiteiros, estavam em condição de abandono, sem clareza sobre a posse: “Acontece muito na rua. O graffiti tem muita essa relação de um muro abandonado e de quem a gente não sabe de quem é, se é de um poder público ou se é de um poder privado. A gente só chega, é um muro abandonado, a gente vai pintar e fica por isso mesmo”, relata. Mas o caráter efêmero da obra não é apenas estético, mas social. Tem os apagamentos por parte do poder público, mas também devido a conflitos com proprietários e disputas simbólicas entre crews de pichadores e grafiteiros. “Por isso que eu digo, e  chego a dizer muitas vezes, que o graffiti vale uma foto, porque um dia você pinta, no outro tá apagado ou a parede tá destruída por conta de uma construção ou por conta de outra coisa, como de rixas, né? Não é diferente no graffiti. Tem muitas tretinhas, briguinhas entre pichadores e grafiteiros, então acontece muito (do graffiti desaparecer)”, reflete. Gitahy (1999, p. 85) já apontava que o graffiti “só existe em sociedades razoavelmente abertas, porque carrega em si a transgressão”. No caso de Teresina, essa transgressão parece ser constantemente tensionada por políticas de criminalização da arte urbana, que dificultam a sua prática até hoje.

Nesse contexto, a prática artística de Soli emerge nos interstícios: nas paredes das casas vizinhas, em quadras de esporte, nos muros deteriorados. Como observa Gitahy (2012, p. 76), “o graffiti democratiza a cidade, ao transformar o espaço de ninguém em espaço de todos, convertendo muros anônimos em suportes de identidade coletiva”. Ao dialogar com as contradições do urbanismo de Teresina, Soli confronta simbolicamente geografia das desigualdades e a distância em relação ao outros bairros que concentram investimentos culturais e equipamentos artísticos

“Tem um dos meus trabalhos que eu acho muito importante, não é questão mais importante, mas é mais sentimental, que ele fica do lado da minha casa praticamente. (…) Ele fica de frente para uma quadra de esportes, do lado de uma creche, que é na Santa Maria da Codipi. É minha letra e tem um pássaro do lado, que o Léo fez. Foi um rolê bem tranquilo e que foi muito relevante para mim”.

Referências do Graffiti

Outra referência que marcou sua trajetória no graffiti foi Yoda, artista de Fortaleza, reconhecido pelo domínio do realismo e pela humildade com que partilha conhecimento: “Eu tive o primeiro contato com ele em 2015, que foi o primeiro festival do Ruaz Crew. Ele era um cara muito foda no realismo, muito humilde também, uma cara que ensina, uma paciência tremenda. (…) Eu acho que juntou o útil ao agradável, né? Que ele é um cara muito humilde, muito paciente. Acho que falta um pouco disso hoje no graffiti”, explica.

O Ceará tem desempenhado papel relevante na circulação regional da arte urbana, e artistas como Yoda dialogam com a tradição do muralismo latino-americano, mas em chave contemporânea, onde técnica realista se mistura ao vocabulário do hip hop. Essa circulação entre estados mostra como Teresina não é isolada, mas integra uma rede nordestina de graffiti, conectada por festivais e coletivos.

A transmissão de técnicas ocorre, para Soli, em dois níveis: primeiro, a tutoria direta de Laércio Sinza; depois, a troca horizontal em festivais e coletivos. O Festival Ruaz Crew, ativo desde 2015, tornou-se espaço privilegiado para esse aprendizado. O artista recorda o encontro com Yoda nesse contexto, e reconhece a importância das redes coletivas: “Foi esse primeiro contato, né, com ele, né? Deve ser uma pessoa humilde, ser um cara muito foda no realismo, e acho que é isso”, conta.

Esse movimento reforça o que escreve Costa (2020, p. 114), em estudo sobre graffiti e inclusão: “as oficinas e festivais de graffiti funcionam como espaços pedagógicos informais, onde o conhecimento circula pela prática e pela observação, numa lógica de cooperação mais que de competição”.

Estética, Política e Poética

Soli assume que seu trabalho é prioritariamente estético. “Eu, especificamente, não trabalho muito mensagens políticas e tudo, é mais trabalho estético mesmo, né?”, diz. A afirmação, no entanto, não deve ser lida como neutralidade. O fato de inscrever letras coloridas nos muros periféricos de Teresina, em si, já é gesto político: uma afirmação de presença, de autoria e de pertencimento.

Em trabalhos coletivos, como os festivais organizados pelo Ruaz Crew, a dimensão política aparece de forma mais explícita. Nessas ocasiões, temas como violência policial, memória comunitária e resistência periférica ganham força, mesmo que Soli não seja o autor principal das mensagens. A estética das letras, nesse contexto, funciona como suporte visual para narrativas mais amplas.

Embora afirme que não trabalha muito com personagens, e não seja absolutamente seu campo preferencial, Soli vem experimentando fazer estudos figurativos de personas. “Eu tô estudando e tentando entrar mais para área de personagem, devagarinho, porque não é uma área que me interessa, mas eu tenho que aprender”, explica. Essa resistência sugere que, para ele, o personagem é complemento, não essência. O símbolo central de sua obra continua sendo a letra expandida como marca gráfica e afetiva.

Análise técnica de obras

Obra 1 – Nome “Soli” em lettering no Santa Maria da Codipi

A produção revela um domínio expressivo do graffiti no campo do lettering estilizado, com forte influência do wildstyle. O artista constrói a palavra “Soli” em volumes tridimensionais, explorando planos de cor que se intercalam entre o verde fluorescente e o vermelho intenso. O contorno negro funciona como elemento de contraste e delimitação, garantindo legibilidade mesmo diante da complexidade formal.

O recurso da sombra projetada reforça a ilusão de profundidade e confere densidade escultórica à tipografia, aproximando-a das práticas visuais destacadas em publicações como Bloodwars. A disposição angular das letras cria movimento e sugere expansão para além do muro, característica recorrente nos estilos urbanos catalogados em revistas como Visual Streets. O conjunto revela preocupação em ocupar o espaço de modo coeso, evitando áreas vazias e garantindo impacto visual imediato para quem transita.

Quanto ao discurso simbólico, a ênfase está na afirmação identitária. O lettering “Soli” é marca, assinatura e manifesto, posicionando o autor dentro da tradição da escrita urbana como inscrição de presença. A escolha por cores vibrantes e padrões geométricos sugere celebração e vitalidade, conectando-se à ideia de graffiti como linguagem de resistência e inclusão social. O trabalho evidencia uma síntese entre técnica refinada, inserção espacial estratégica e potência identitária, consolidando-se como expressão significativa do graffiti piauiense. Essa arte se insere em um mural maior, na Santa Maria da Codipi, em homenagem a Laercio Sinza, seu mentor.

Obra 2 – Muro da quadra na Santa Maria da Codipi (2016)



Situada em frente a uma creche, essa peça combina lettering robusto de Soli e a figura de um pássaro, feita por Léo. A obra articula dois elementos distintos: a energia cromática das letras, que se projetam em tons vibrantes, e o desenho figurativo da ave, que confere organicidade ao conjunto. O contexto — uma quadra comunitária — reforça o caráter público e cotidiano da obra. Mais do que estética, ela funciona como marcador simbólico do bairro, visível para crianças e famílias que circulam diariamente.

A peça evidencia a consolidação de um lettering de caráter robusto e dinâmico. O artista constrói letras volumétricas em traços arredondados, com preenchimento camuflado em tons de rosa e roxo, recurso que introduz textura e ritmo interno. O contorno branco funciona como elemento de separação nítida em relação ao fundo verde-azulado, enquanto o sombreamento negro garante densidade tridimensional e peso visual. Do ponto de vista técnico, nota-se domínio no uso do spray, tanto na uniformidade das áreas chapadas quanto na precisão das bordas.

Na dimensão espacial, o lettering ocupa de forma equilibrada a superfície central do muro, expandindo-se horizontalmente e respeitando a lógica arquitetônica da quadra. A composição se mantém autônoma, ainda que dialogue com a figura do pássaro, criando um contraste entre a organicidade do animal e a estrutura geométrica das letras. Esse diálogo amplia a experiência visual, mas preserva o lettering como núcleo da intervenção.

Obra 3 – Tensões entre a tecnologia e a vida orgânica

A intervenção no muro, próxima a uma estrutura abandonada, apresenta um diálogo entre colagem gráfica e pintura mural, configurando um trabalho de caráter híbrido. No aspecto técnico, o uso predominante do preto e branco na área da esquerda resulta em um grafismo detalhado, com sobreposição de elementos mecânicos e orgânicos que remetem à linguagem do stencil e da gravura. Esse procedimento, ao acumular imagens em um mesmo plano, cria densidade visual e textura marcada, contrastando com o azul chapado do fundo. Já as figuras de aves, aplicadas em tonalidades frias, revelam domínio de gradação cromática, aproximando-se do realismo, ainda que simplificadas no traço.

Na composição espacial, a obra distribui-se horizontalmente, acompanhando a extensão do muro e integrando-se às formas da superfície. O grafismo inicial se expande em ramificações que se conectam às aves, criando uma narrativa visual orgânica. Os círculos azuis dispersos funcionam como marcadores rítmicos, quebrando a monotonia do fundo e sugerindo movimento. Essa estrutura dialoga com práticas contemporâneas do graffiti que exploram a muralização como paisagem expandida, mais próxima da pintura de rua do que do lettering tradicional.

No campo do discurso, a fusão de imagens mecânicas e naturais sugere reflexão sobre tensões entre tecnologia e vida, ou entre o artificial e o orgânico, tema recorrente na arte urbana global. Inserida em um espaço público degradado, a obra resignifica o entorno, oferecendo cor, narrativa e sentido coletivo ao cotidiano da comunidade. Nesse sentido, opera como marcador simbólico e estético, reafirmando a potência do graffiti enquanto linguagem crítica e inclusiva no espaço urbano. Como afirma Gitahy (2012, p. 203), “cada sprayada é coreografia, cada muro é palco efêmero de uma dança entre artista, cidade e tempo”.

Obra 4 – Meu nome é Soli

A peça apresenta um lettering com forte caráter experimental, explorando variações tipográficas que rompem com a linearidade clássica. Cada letra é tratada de maneira distinta, com preenchimentos cromáticos diferenciados — verde, laranja, amarelo e vermelho — sugerindo uma abordagem quase modular. Essa escolha confere diversidade interna, mas também fragmenta a unidade visual, revelando um exercício de estilo e de experimentação formal. O uso de contornos grossos e de áreas chapadas indica domínio do spray, embora algumas zonas apresentem irregularidades que reforçam o caráter processual da obra.

Na relação com o espaço, o grafismo ocupa a extensão do muro de forma equilibrada, explorando a horizontalidade e se apoiando no fundo escuro para destacar as cores quentes e frias. A presença da Pantera Cor-de-Rosa no extremo esquerdo acrescenta um elemento lúdico e culturalmente reconhecível, funcionando como contraponto figurativo ao predomínio tipográfico. O muro, situado em frente a uma instituição escolar, amplia o impacto da intervenção, projetando o graffiti como marca identitária em um espaço de circulação diária de estudantes.

Do ponto de vista discursivo, a obra reforça a assinatura “Soli” como expressão de presença e pertencimento no território urbano. A diversidade cromática pode ser interpretada como metáfora da multiplicidade de vozes e estilos que o graffiti comporta, tensionando o limite entre unidade e fragmentação. Assim, o trabalho se insere no campo da experimentação tipográfica do graffiti, evidenciando a busca por identidade visual própria no cenário piauiense.


Referências

  • GITAHY, Celso. O que é graffiti. 3. reimp. São Paulo: Brasiliense, 2012.

  • IBGE. Estimativas Populacionais por Municípios. Rio de Janeiro: IBGE, 2022.

  • LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.

  • MINISTÉRIO DAS CIDADES. Relatório PAC – Conjunto Habitacional Jacinta Andrade. Brasília: Governo Federal, 2012.

  • IAGO COSTA. Transcrição de entrevista concedida ao Projeto Grafi-THE. Teresina, 2025.

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