Nosila

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No final dos anos 1990, quando Teresina oscilava entre o ritmo lento das tardes abafadas e a efervescência de uma juventude em busca de expressão, surgiram os primeiros riscos nos muros da capital. O ambiente urbano de Teresina misturava-se às periferias pulsantes, atravessada por fluxos intensos de estudantes e trabalhadores, indo daqui para lá. A cidade e uma malha que se estendia de norte a sul, de leste a sudoeste, oferecia espaços de experimentação, mas também vigilância. Era o cenário perfeito para os rabiscos urbanos, batalhas de tags, o arriscado discurso caligráfico dos pixos, com suas assinaturas cifradas. Nesse período, o graffiti era uma linguagem em desenvolvimento, que por aceitação e visibilidade.

Nascido em 1980, Marcos Alison se encantou com o spray ainda adolescente, em meados de 1996. O fascínio não estava apenas na tinta em aerossol, mas na possibilidade de transformar o gesto em traço, o contorno em forma, explorando efeitos estéticos tão amplos quanto a diversidade de bicos (caps) permitia. Como ele próprio lembra: “a primeira vez que eu peguei na lata de spray foi em… acho que foi em 1996. Eu tava na escola, no centro. E aí, apresentado por uns colegas… nossa, eu fiquei encantado. Apertar o spray e sair aquela tinta e você conseguir fazer um traço na parede… Nossa, é viciante. E foi o início de tudo”, exulta.

Nosila foi batizado em meio à tradição da arte de rua. Seu nome artístico nasceu da inversão de “Alison”, como um jogo de códigos próprios da cena, em que a palavra se torna identidade e também assinatura. “Nesse meio, não tem como falar seu nome… é muito difícil você colocar o seu nome. Tipo, você vai fazer um graffiti, você vai botar o seu nome ‘Marcos’? Não tem muito sentido. Todo artista gosta sempre de dar uma ênfase criando um nome artístico, né?”, questiona.

Nosila rememora que foi um amigo do pixo que fez uma operação semiótica em sua assinatura: “Ele pegou meu nome, ‘Allison’, virou ao contrário e tirou um ‘S’. E aí ficou Nosila”. A inversão de seu nome não apenas inaugurou sua identidade singular, mas uma marca artística, persistente, que o acompanha até hoje.

No entanto, as investidas juvenis perderam força entre 1997 e 2000, quando a cena conheceu a vitalidade criativa e a repressão em igual medida. O movimento de pixo, muito reprimido, causou uma debandada: muitos artistas se afastaram dos muros e alguns poucos que ficaram, se arriscavam a enfrentar os rigores da justiça. Foi nesse momento que Nosila resolveu dar  uma pausa.

Dez anos depois, por volta de 2012, o cenário das artes urbanas tinha se alterado visivelmente, coincidindo com a rearticulação da cena local, na organização de coletivos  de grafiteiros e no burburinho de mutirões e festivais de graffiti. Nesse momento, Nosila sentiu que era o momento certo de voltar. “e voltei com força total. E depois daí, foi só progressão”, relembra.

Movimento, crews, parcerias, festivais

Nosila pertenceu a uma geração que viveu a efervescência das crews em Teresina no final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Sua memória resgata uma lista que é parte do patrimônio cultural da cidade: “Na época lá tinha muita crew, muita… 97, 98 tinha crio demais, tanto de pixo como de graffiti. Algumas que eu lembro: tinha a FM (Fantasma da Madrugada), da qual eu fazia parte. Tinha o R.S. (Rebeldes Suicidas), o R.A (Rebeldes Anarquistas), o G.R. (Grafiteiros Rebeldes)”, lembra.

Também tinham outras formações que atravessaram sua trajetória, como a BTC (Bombardeio Terrorista Crew), criada em 2001; a G.G. (Grafiteiros Gospel) e a RRR (Ratos de Rua e Rampa), grupo vinculado à cena do skate. As crews representavam não apenas coletivos de produção, mas também formas de pertencimento juvenil, redes de amizade e resistência em um contexto de repressão policial.

Em 2014, ele participou do 1º Encontro Teresinense de Grafite, que reuniu quase uma centena de artistas do Piauí, Maranhão e Ceará para grafitar os dois paredões do viaduto da Avenida Higino Cunha. Nessa intervenção, Nosila fez um exercício em grande escala, registrando o próprio nome em letras estilizadas.

Nosila confessa que, se já fez parte dos coletivos, hoje se afastou dessa dinâmica. “Já participei, já fiz parte de algumas crews… Só que hoje eu não faço mais parte de nenhuma. Eu dei uma mudada na minha forma de trabalhar com graffiti. Hoje como eu virei marca. E aí eu abdiquei de fazer parte de crew e foquei na minha marca, que é o Nosila”, diz. O afastamento não significa ruptura com a cena: Nosila mantém amizades, circula em eventos e reconhece a importância dos festivais.

Entre eles, destaca o Festival Retalho e o Ruaz Crew, espaços de difusão e intercâmbio artístico. “Esses festivais trazem pessoas de fora para fazer trabalhos aqui. Eles fizeram alguns painéis bem legais. Pegaram as laterais dos prédios aí e tudo. Eu já participei de várias edições do Ruaz Crew. E já fui convidado ano passado também para participar. Esse ano vai ter de novo. Eles já estão conseguindo trazer gente de fora. Até de fora do Brasil. E é um festival bem expressivo”.

A cidade enquanto nicho da experiência

A cartografia de Nosila no graffiti é também uma cartografia afetiva da cidade. Seus muros, pontes, lavanderias e mercados formam uma espécie de mapa paralelo, onde o olhar do artista se encontra com o espaço urbano e o ressignifica. “Nossa, eu fiz alguns trabalhos bem legais mas acredito que  alguns já não estão mais visíveis, né?”.

A maior parte de sua arte está situada em áreas de intenso trânsito popular, como o Mercado da Piçarra, com seu burburinho diário, na Lavanderia Comunitária do Ilhotas, espaço de trabalho e convivência de mulheres periféricas. Ao intervir nesses espaços, Nosila estabelece um diálogo com o cotidiano da cidade, dando visibilidade a memórias, personagens e práticas que costumam ser invisibilizadas:

Tem um Próxima ponte Wall Ferraz, no viaduto da linha férrea. Fiz um cordel lá e uma parte abstrata nas bases da ponte. Tem o Mercado da Piçarra, onde eu fiz uma arte bem expressiva , representando o Nordeste. E na Lavanderia Comunitária, que fica em frente ao QCG, fiz uma personagem negra, meio que expressando a força daquelas mulheres que trabalham lá e que ganham o seu sustento ali da região do Ilhotas” .

Ao escolher espaços de alta circulação para projetar a sua arte, Nosila busca reconfigurar a experiência dos transeuntes e dar sentido ao que Henri Lefebvre descreveu como o “direito à cidade”: não apenas o uso físico do espaço, mas a apropriação simbólica, que redefine seu significado.

Amigos de tinta

A trajetória de Nosila é atravessada por companheiros de muro, que, hoje, nomes consagrados do graffiti, o ajudaram a transformar sua prática estética em meio de vida. “Sem sombra de dúvida, Hudson Mello foi um cara que me ajudou muito. E o WG! Não tem como não falar do WG, que é uma referência em Teresina, Piauí, Nordeste, Brasil. O cara foi um professor, me deu muita dica”, conta.

As referências locais não apenas foram seus guias e incentivadores, figuras que transmitiram conhecimento e legitimaram a sua presença, ainda jovem grafiteiro, na cena teresinense. “O Dhieck também estava na cena, nessa época. Nossa, o Gardel, também já grafitava. Você começa a andar com essas pessoas e eles meio que veem que você tá se dedicando e vão ajudando” , conta. Na sua percepção, o coletivo de graffiti funciona como rede de colaboração, com seu caráter pedagógico informal, onde o aprendizado se dá, não apenas por observação e prática, mas generosidade mútua.

Ele também cita as referências nacionais. A sua lista revela um percurso plural: o Cripta Djan, cuja raiz está no picho, aos Gêmeos, grafiteiros paulistanos que usufruem de uma projeção internacional; Finok, o Ed-Mun, cujo trabalho monumental Nosila conseguiu acompanhar quando ele veio a Teresina. “O cara é… nossa! Fenomenal, mano. Muito bom ver ele pintando assim de perto”, exulta.

Cada referência não é apenas inspiração, mas parte de uma rede de circulação de técnicas, estilos e ideias que ajudaram a consolidar sua identidade estética.

Proposta estética e política

Em seus voos estéticos, Nosila dialoga com vertentes do picho, de onde tira a inspiração para suas letras. “Eu sou do bomb, gosto dessa parada. Letras, claro. Faço alguns personagens. Consigo replicar algumas coisas. Mas também gosto de ressignificar peças, de fazer personalização, customização. Mas no graffiti, meu estilo é o bomb, é o graffiti de ataque” , conta.

Mas a sua obra, segundo ele, não tem um viés político. O artista é categórico em negar: “Não, não. É mais estética mesmo. Nem gosto muito dessa palavra ‘política’, nem de me envolver com isso”, diz. Sua recusa em assumir a dimensão política não elimina, contudo, a força simbólica de trabalhos como a personagem negra pintada na Lavanderia Comunitária da Ilhotas. Ela representa trabalhadoras periféricas, e carrega, ainda que não intencionalmente, uma leitura social e cultural. O cordel estilizado na via férrea conecta o graffiti à tradição literária nordestina, participando da reconfiguração simbólica da cidade com suas narrativas visuais.

Hoje, Nosila é um dos artistas de graffiti que vivem diretamente de sua arte. “Sim, sim. Posso dizer que sim. Hoje eu tô tendo um retorno bem legal. Com esses trabalhos comerciais, com personalização de peças e várias coisas que eu venho fazendo. Adoro fazer customização. E isso tem me dado um retorno bem legal”, revela.

Com a criação de sua marca própria, Nosila passou a se dedicar a personalizações e a projetos encomendados, que se tornaram parte central de sua produção, sem que isso eliminasse o prazer do graffiti de rua, realizado de forma livre e não institucionalizada.

A profissionalização também passou pelo domínio da imagem e da comunicação. Nosila descreve sua preocupação em registrar processos de pintura em foto e vídeo, transformando a produção em conteúdo para redes sociais. Esse esforço, antes alvo de críticas, tornou-se diferencial competitivo. Hoje, a contratação de sua arte muitas vezes envolve a expectativa de entrega de registros audiovisuais: “As pessoas não me contratam só pela arte. Hoje, quando vão me contratar, já perguntam: vai ter vídeo, vai ter vídeo do processo? O vídeo vai pra minha rede social. E se algum vídeo meu que eu faço do processo da arte vai pro Instagram ou vai pro cliente, é porque ele pagou pelo vídeo, porque é um trabalho, né?” , explica.

Entre a rua e o mercado, Nosila construiu uma identidade híbrida: grafiteiro de ataque, mas também produtor de conteúdo, artista independente e marca comercial. A recusa em integrar crews na atualidade reforça essa autonomia: ele optou por não se vincular a coletivos para focar no desenvolvimento de sua marca. A estratégia, contudo, não rompe com a cena — ao contrário, mantém-no em diálogo com outros artistas e festivais, mas sem compromissos fixos.

A história do graffiti em Teresina, vista a partir de Nosila, é uma história de continuidade e reinvenção — marcada pela persistência de nomes e estilos, pela capacidade de adaptação ao mercado e pela força de coletivos que mantêm a chama acesa.